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Walter Lippmann
Em “O Público Fantasma”, Walter Lippmann declara sua pouca fé na capacidade do cidadão comum na hora de tomar decisões políticas simples, como votar para presidente. Culpa da falta de educação social, isto é, educação sobre problemas urbanos, suburbanos, estaduais, nacionais, internacionais, financeiros, geológicos, industriais, trabalhistas, agrícolas, jurídicos.
É quase enciclopédica a quantidade de informação necessária para participar de uma simples conversa de café sem dizer besteira. E não basta ensinar ao jovem estudante essas questões; é preciso que ele se atualize permanentemente porque o problema do transporte público este ano não é o mesmo do ano passado. Nem o do orçamento público, que agora tem um anexo secreto. Muito menos o da legislação sobre o uso do IPTU para construir calçadas, que estão uma buraqueira.
Lippmann conta a fábula do professor que, ao entardecer, meditava sobre toda essa problemática caminhando por um parque. Bateu numa árvore. Sendo um homem bem educado, prontamente tirou o chapéu (a história é de 1927. Na época, os professores ganhavam para comprar chapéus), inclinou-se diante da árvore e disse: “Desculpe-me, senhor, eu pensei que o senhor fosse uma árvore”.
Imagino o que aconteceria se o professor batesse não em uma árvore mas no último modelo da máquina de votar do Tribunal Superior Eleitoral. Na tela estaria o convite para escolher o próximo presidente da República entre Luiz Inácio Lula da Silva, Jair Bolsonaro, Ciro Gomes, Simone Tebet e mais sei lá quantos outros candidatos. E em outras telas os nomes de centenas de candidatos e deputado federal e deputado estadual. Procura no bolso, não acha a colinha. Olha no chão, não há material de propaganda jogado fora, como nas eleições de antigamente. O professor tira o chapéu, inclina-se diante da urna eletrônica e diz: “Desculpe, urna eletrônica, eu pensei que a senhora fosse do tempo em que o voto já vinha impresso e era entregue pelo cabo eleitoral”.
E decide não votar.
Porque o presidencialismo gerou o presidente de opereta. Votar é uma inutilidade. Nossa democracia representativa não dá bola para a demografia. Como é que um país em que a maioria dos habitantes são negros e pobres tem um congresso branco e tão rico? Onde estão as mulheres deputadas, que poderiam ser maioria no Congresso se mulher votasse em mulher e não passam de 15%? Os representantes discursam contra a corrupção que, para eles, é roubar dos cofres públicos. Evitam deblaterar contra o sistema bancário, que rouba em um dia o que a turma do petrolão levou anos para levar. Nem denunciam o sistema que manda para a penitenciária, aos milhares, passadores de fumo – gente preta, pobre e periférica. O dono do negócio goza a vida a beira mar.
Um congresso de opereta, mistura de Cancion de Tchuchuchuca com La Generala.
Lippmann não era otimista com o futuro. Lembrava que Jefferson, Hamilton e os outros Pais Fundadores dos EUA fundaram uma república, não uma democracia. Aqui foi pior: o Marechal Deodoro, com dolorosa crise de gota, foi levado ao Paço para homologar o golpe de estado.
Que tal proclamar uma democracia?
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Rua Mauá tarde de sol.
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Carlos Drummond de Andrade
Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de
seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não-perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh’alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza sem fruto.
Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto, e passa…
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.
Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.
Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita sem máscaras?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.
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Cada capa de Eugênio Hirscht é uma obra prima. Nesta parece que ele caprichou ainda mais.
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Avalio a repercussão da morte de Lygia Fagundes Telles com certo desapontamento. Esperava muita comoção. Cada brasileiro com curso secundário completo tem obrigação de chorar essa perda. Morreu uma mestra da literatura, a autora traduzida em quinze línguas que todo ano está no Enem, a escritora que combinou o feminino com o político naquele momento de medo nacional e não teve medo – mergulhou com força nas personagens que inspiravam um mundo novo, onde as mulheres são capazes de tudo em todas as áreas. Até de vencer uma ditadura.
O romance “As Meninas”, de 1973, tinha algum tipo de parentesco com “O Grupo”, de Mary McCarthy, publicado dez anos antes, e vinte e quatro meses na lista de mais vendidos do New York Times, pela temática e principalmente pelo frescor, a inteligência, a valentia do texto. Ignorei que Lygia não enfrentou a ferocidade dos críticos como aconteceu com “O Grupo”. Norman Mailer disse que aquilo não passava de “um romance trivial escrito por uma mocinha”, impregnado de um “perfume comunal, mistura de Ma Griffe com gel contraceptivo”. Aqui no Brasil, longe de Mailer mas perto do DOI-CODI, Lygia foi corajosa bastante para incluir críticas pesadas à ditadura no auge do AI-5. A descrição crua, minuciosa, da sessão de tortura num subterrâneo da repressão vale por cem editoriais.
Descobri novos jeitos de escrever em “As Meninas”, que encontrei já na terceira edição da José Olímpio Editora, com capa de Eugênio Hirsch (nascido em 1923, como Lygia). Em folhas de papel-lauda, copiei trechos para sentir as pausas e a melodia da narrativa. Era um dos editores do suplemento de domingo do Estado do Paraná. Na capa do caderno publiquei uma resenha meio impressionista sobre aquele livro romântico e subversivo, aquele português cheio de invenções e influências (achei) de James Joyce e Jack Kerouak. A página do Estado ficou atraente e mereceu uma carta da autora; em sua caligrafia bonita elogiou minha acuidade literária. Acuidade, heim? “Você levantou questões importantes sobre a literatura atual e o meu trabalho”, escreveu Lygia agradecida e convidando para uma conversa. “Espero poder trocar ideias com você”.
Trocar ideias? Imagine. Eu não tinha uma única e anêmica ideia para oferecer à dona de tanta criatividade. Nem era capaz de qualquer observação inteligente sobre o psiquismo das personagens, o desenvolvimento da trama, muito menos sobre a mensagem, uma coisa que estava na moda e devia ser descoberta e analisada nas entranhas da obra literária.
A carta de Lygia está perdida entre as camadas geológicas dos guardados. Uma primeira mexida nos papeis não teve sucesso. Transcrevê-la agora seria importante primeiro para mostrar aos amigos que não estou escrevendo à toa; estou lamentando a perda da oportunidade de conversar com uma notável escritora, minha correspondente, que talvez viesse a ser uma amiga, colega, confreira, irmã em admirações. Pois concordamos que “As Meninas” é o melhor romance de Lygia Fagundes Telles, não porque seja literariamente superior aos outros, ou o mais traduzido, ou aquele que fez sucesso no cinema, mas porque foi escrito nos anos de chumbo – “um testemunho desse nosso tempo e dessa nossa sociedade”.
Um dia, anos depois, visitava minha amiga Lygia França Pereira, casada com Modesto Carone, crítico literário e tradutor de Kafka. Contei sobre a incursão pela crítica (o texto era na verdade uma resenha) e sobre a carta-convite. Modesto era amigo da escritora e do marido Paulo Emilio Salles Gomes. “Vamos lá”, propôs. Entrei em pânico. Não posso, tenho que voltar correndo para Curitiba – era desculpa para não contar que tinha medo de não estar à altura da conversa, de ser chamado a opinar sobre o fluxo de consciência e o monólogo interior, ficar boboca, cristalizado, provincianamente encolhido num canto da sala da maior escritora do Brasil.
Caridosamente não insistiram no convite. E eu fiquei sem trocar ideias com Lygia, portanto sem descobrir o que ela e Paulo Emílio conversaram enquanto escreviam a quatro mãos o premiado roteiro cinematográfico de “Capitu”, de Machado de Assis. Sem poder perguntar se ela leu Monteiro Lobato para gostar tanto de analisar insetos como a Emília na “Reforma de Natureza”. Ou como decidiu que “O mal está no próprio gênero humano, ninguém presta?”
E dizer que concordo cem por cento com ela quando diz: “Às vezes a gente melhora. Mas passa”.
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Um New Deal da pós-pandemia.
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Mark Twain dizia que não se deve prestar muita atenção a discurso de político – a gente corre o risco de acreditar nele. Pois eu prestei atenção ao discurso de posse de Joe Biden. Ele disse que ia trazer a cadeia de suprimentos (supply chain) de volta para os Estados Unidos e essa foi uma declaração revolucionária porque propõe um cavalo-de-pau no neoliberalismo, na globalização e na terceirização que dominou o pensamento americano de Ronald Reagan para cá.
Acredito que Biden disse a verdade.
Para botar sua verdade no mundo – que também é o nosso mundo, na medida em que o Brasil continua dependente dos EUA até para decidir quem pode visitar a Base de Alcantara – o presidente encomendou à assessoria econômica um estudo da realidade americana. Quem tiver paciência, pode lê-lo em whitehouse.gov sob o título Building Resilient Supply Chains, Revitalizing American Manufacturing, e Fostering Broad-Based Growth: 100 Day Reviews Under Executiva Order 14017. Trata-se de um relatório de 250 páginas que já está na mesa dos candidatos e, a não ser que virem a mesa, vai estar no discurso de posse do novo presidente do Brasil.
O documento dispensa retórica porque tem a força dos números. Começa homenageando o mais intervencionista de todos os presidentes americanos. Para ganhar a guerra, o governo Roosevelt requisitou todos os insumos estratégicos, ditou salários e preços, investiu em fábricas de tanques, canhões, uniformes, medicamentos e alimentos para os soldados. A produção de automóveis entre 1942 e 1945 foi zero porque as montadoras fabricavam jeeps e tanques; o governo tornou-se o comprador de dois terços da produção de toda produção das indústrias.
A economia bombou, com volta ao pleno emprego e aumento de 48% no Produto Nacional Bruto. Como não havia besteiras tipo teto de gastos, o déficit orçamentário superou 25%. Não custa repetir: os assessores de Biden descobriram que até o início da guerra o desemprego era maior que dois dígitos; após a chegada de encomendas governamentais de mais de 100 bilhões de dólares – mais do que o produto de toda a economia uma década antes – o desemprego caiu para 3 e a produtividade dobrou. Em 1944 as fábricas produziram 96 mil aviões e os estaleiros de Henry Kaiser, que levavam 365 dias para colocar no mar um navio da classe Liberty, baixaram para 39 dias em 1943 e apenas 14 dias no ano seguinte.
Uma virada na economia que não ficou nisso. O esforço industrial melhorou a vida da população civil e trouxe avanços tecnológicos, como a Internet, que mudaram os EUA e o mundo nos pós-guerra. Um documento clássico da época foi “Ciência, a Fronteira Sem Fim”, de Vannevar Bush, conselheiro científico de Roosevelt, que ensinava: a pesquisa tecnológica é o motor do desenvolvimento.
O documento de Biden cita o passado para indicar um caminho para as atuais dificuldades, que não são poucas; começam com o desafio da China, que atualmente refina 60% de todo o lítio e 80% do cobalto mundial. E prosseguem no front interno, onde alguns cabeças de ovo insistem na crença neoliberal do laisser faire, a ideia de que se o vizinho faz melhor e mais barato deve-se comprar. O livre mercado, o estado mínimo e outros dogmas da ortodoxia conservadora acabaram com a grande indústria manufatureira – aquela que cria empregos, gera encomendas às indústrias e dificilmente sonega impostos porque reinveste o lucro. O Big State ganhou a Guerra Fria.
Para competir nessa nova guerra contra o império chinês Joe Biden apresentou uma proposta de orçamento de quase quatro trilhões de dólares, depois reduzida pelo Congresso. O objetivo desse dinheirão é conseguir soberania industrial em áreas estratégicas. A produção não pode parar, por exemplo, porque os semicondutores que movem tudo que é moderno são feitos na China, Coreia do Sul, Taiwan e até na Tailândia; a poluição não pode aumentar porque a produção de baterias elétricas de alto desempenho está na Asia; as pessoas não podem ser contaminadas pelo Covid 19 porque faltam máscaras – também produzidas do outro lado do mundo porque lá é mais barato.
Não foi necessário muito esforço para descobrir o caminho. Desde 1989, o MIT, Instituto de Tecnologia de Massachusetts, publica uma série de relatórios intitulados Made in América: Recuperando a Liderança Produtiva, onde sugere estratégias para retomar o espaço entregue aos produtores asiáticos. Em 2005 o jornalista Barry Lynn escreveu End of Line, mostrando os custos ocultos de globalização. Os que criticaram hoje admitem que aquele era mais que um livro de não-ficção – era uma profecia.
O relatório do Casa Branca significa uma dramática reviravolta nos dogmas econômicos dos últimos 50 anos. Ele diz que não é sonho uma estratégia neo-Rooseveltiana de prosperidade compartilhada, empregos para quase todos e um peru na mesa no Dia de Ação de Graças.
Se vai dar certo ninguém sabe. Os Estados Unidos são aquele lutador de 40 anos que volta ao ringue para tentar reconquistar o cinturão de ouro contra um adversário fortíssimo e muito mais novo.
Tirando os últimos neoliberais (que, em grande número, vivem no Brasil e falam em perigo comunista), todas as pessoas lúcidas concordam que está na hora de o mundo inteiro fazer uma curva em U e pensar na importância do investimento público e do planejamento para desenvolver o país e compartilhar a prosperidade com todos.
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P.S. – A resenha de Robert Kuttner está na página 8 do exemplar de 18 de novembro da New York Review of Books. Encontrável na Livraria da Vila. Os livros de Kuttner são editados no Brasil pela Companhia das Letras.
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Alessandra Galloni, da Reuters
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21.0pt 0cm;">Press Gazetta, da Inglaterra, perguntou a empresários de mídia o que acham do ano de 2022. Um bom número deles indicou uma oportunidade: trabalhar com notícias de boa qualidade. É o que todo mundo devia estar fazendo, mas o universo de fakenews é gigantesco.
21.0pt 0cm;">“Na medida em que a política e a sociedade tornam-se cada vez mais polarizadas e opiniáticas, surge uma tremenda oportunidade para publishers que oferecem notícias imparciais” , escreveu Allessandra Galloni, editora-chefe da Reuters. “Oferecer ao leitor jornalismo bem checado, baseado em fatos, é uma boa receita de sucesso do ponto de vista comercial”.
Almar Latour, do Dow Jones, foi além: “A sociedade está testemunhando mudanças profundas na tecnologia, midia, geopolítica, saúde, economia, desigualdade. Nunca houve um momento como esse em nossas vidas e isso cria uma necessidade cada vez maior de jornalismo de qualidade. Nossa missão é oferecer ao leitor jornalismo acreditado, dados e análises para ajudar as pessoas a tomar decisões e navegar essa era”.
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Rupert Murdoch, magnata australiano, dono da Fox News, lidera a midia digital nos EUA
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Relatório publicado na PressGazette, da Inglaterra, informa que a mídia digital nos EUA ainda está razoavelmente diversificada.
A análise do número de visitas aos 50 maiores sites de notícia mostra que apenas três recebem mais de 10% do total de visitas, enquanto outros oito têm um share superior a 3%. Os dados são da Similarweb.
Na Inglaterra, a concentração é maior. Apenas dois grupos – Reach (Daily Mirror, Daily Express etc) e BBC – recebem metade de todas as visitas.
A News Corp, de Rupert Murdoch, dona da foxnews.com e nypost.com, entre outros, tem o maior share – 12%. Recebe 425 milhões dos três bilhões de visitas mensais aos 50 maiores sites. Os dados são de outubro de 2021.
Em segundo lugar, com 11%, correspondentes a 364 milhões de visitas, vêm os sites de propriedade da gigante de telecomunicações AT&T, que controla entre outros a Turner Broadcasting, dona da CNN.
Em terceiro, estão os sites da Microsoft, com 10% (330 milhões).
A seguir, temos Apollo Global Management – Cox Midia Group, Yahoo! (8%, ou 250 milhões)
Ochs Sulzbergers/NY Times Co. (7% ou 212 milhões)
Google (5%, 165 milhões)
Comcast (4%, 130 milhões)
Grupo Bezos – Amazon & Washington Post (3% ou 100 milhões)
Refletindo a diversidade do mercado digital americano, 40% das visitas foram para sites pertencentes a pessoas ou grupos que conseguiram menos de 3% de share. Entre eles, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Ùltimos Dias, dona da maior emissora de Utah, a KSL; Axel Springer, proprietário do Business Insider e Politico; New Media Investiment Group, que controla o jornal USA Today através da rede Gannett.
Abaixo estão sites de entretenimento como gazillions.com; de notícias gerais standardnews.com; de direita epochtimes.com, ligado ao movimento religioso chinês Falun Gong.
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Israel anunciou que o número da novas infecções de Covid-19 é o maior desde setembro. Apesar de os novos casos representarem só 21 por cento do número de setembro, bastou para que o governo anunciasse a aplicação da quarta dose de reforço para pessoas acima de 60 anos e para quem trabalha na área de saúde.
-A Ômicron chegou – anunciou pela TV o primeiro ministro Naftali Bennett. – Vamos tomar a quarta dose.
A decisão foi tomada apesar de advertências de especialistas que desejam maiores evidências sobre os benefícios da quarta dose em prazo inferior a doze meses. No caso de idosos, porém, todos concordam que a imunidade da terceira dose cai rapidamente entre a população acima de 60 anos, justificando o reforço.
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A gente acorda cedo no primeiro do ano. E corre para a cidade para ver as ruas desertas, pardais ciscando no asfalto sem medo de carros. Aproveita a oportunidade para inspecionar as entranhas do horroroso pinheirinho de arame e fio elétrico, disneylike, que a prefeitura teima em iluminar todo ano sob pretexto de homenagear a Terra dos Pinheirais.
Anos atrás uma palmeira de plástico foi enxotada da Pracinha do Batel pelos moradores do bairro. Urge expulsar esse falso pinheiro ianque.
A gente quer fotografar uma vez mais o gari, solitário trabalhador do ano novo.
Lá está ele no meio da praça Dezenove de Dezembro disposto a provar aos turistas que: a) aqui se trabalha, mesmo sem pagamento de adicional de ano novo e apesar da reforma trabalhista; b) que Curitiba é limpa, ao menos no sentido literal.
Mas não há turistas. Apenas um casalzinho de namorados, um grudado no outro, que ainda dorme em um banco – e nesse aspecto Curitiba é mais generosa que, por exemplo, Nova York, onde bancos de madeira têm braços de ferro a cada 50 centímetros.
Cenas assim foram cantadas por João de Barro e Alberto Ribeiro em Fim de Semana em Paquetá.
E quando rompe a madrugada
Da mais feiticeira das manhãs
Agarradinhos, descuidados,
Ainda dormem namorados
Sob um céu de flamboyants
Flamboyant não é árvore curitibana, não aguenta o frio, mas o pesquisador Francisco Cardoso descobriu dois exemplares que sobreviveram ao clima. Estão na rua Sete de Abril, entre Conselheiro Carrão e Simão Bolivar, no Alto da Glória.
Os namorados da Praça Dezenove seriam o grande assunto do primeiro do ano não fossem os sem-teto do Centro Cívico. Eles moram bem em frente da Prefeitura. Tiveram a boa ideia de inventar uma lavanderia a céu aberto e quaradouro no jardim que hoje pertence ao Tribunal de Justiça. Lá colocaram as roupas para secar e quarar – demonstração de como o espaço público pode ser usado para elevar a qualidade de vida do povo e incluir os excluídos.
Não vá o guarda municipal expulsar os sem-teto de lá. A marquise não é dele, é da antiga LBA – Legião Brasileira de Assistência. De Assistência, entendeu? Numa sociedade saudável, os líderes estariam sugerindo lugares para mais quaradouros, para outras marquises e para mais bancos de praça sem braços de ferro.
Agora uma observação importante, do Chistopher Hitchens. Dante reservou um dos cantos mais quentes de seu Inferno para aqueles que, em tempos de crise moral, teimam em permanecer neutros. Não se pode ser neutro diante dos namorados da Praça Dezenove e dos sem-teto do Centro Cívico.
Eles nos tocam. Instigam a agir.
No século 20, a palavra genocídio foi inventada para descrever o extermínio dos armênios cristãos pelos turcos otomanos e a tentativa de alemães nazistas de eliminar os judeus do mundo. No século 21, os genocídios se multiplicaram pelo mundo e chegaram a nós – o governo negligenciou o fornecimento de oxigênio para milhares de moradores de Manaus, que morreram de falta de ar. Brasileiros, geralmente negros e pobres, são executados em confrontos com a polícia, na luta pela terra, no hospital público sem higiene, sem medicamentos, sem médicos.
Meu compromisso de ano novo é pela igualdade e contra os fanatismos, principalmente o fanatismo da pátria amada, do líder justiceiro, da ideologia da ordem, da fé no “futuro grandioso”. Na essência, é um compromisso com o ceticismo, com a impaciência, com o ódio à injustiça.
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Exemplo.
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Máscara luminosa do Spider Man, à venda nas boas casas do ramo.
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O Homem Aranha: Sem Volta Para Casa acaba de bater um recorde. Apenas 15 dias após o lançamento tornou-se o primeiro filme da era da pandemia a alcançar um bilhão de dólares nas bilheterias. E ainda não foi distribuído na China, o maior mercado cinematográfico do mundo.
Superou o épico coreano A Batalha do Lago Changjin como o filme de maior faturamento de 2021. A informação está no site da BBC.
A coprodução da Sony e Disney alcançou este marco mesmo com o aumento de casos de covid pela variante ômicron, que voltou a ameaçar os eventos em recinto fechado. Em vários países foram criadas restrições a reuniões.
Se é bom? Se tem valor artístico? Essas bobagens devem ser esquecidas diante do sucesso. O filme é aplaudido por 98% das plateias e elogiado por 93% dos críticos. Está no Rotten Tomatoes.
Pegue seus filhos ou netos e vá ao cinema antes que proíbam.
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O livro é assinado por um craque em biografias.
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Li num estirão 200 páginas, mais da metade, de Lula, a biografia que Fernando Morais acaba de lançar pela Companhia das Letras. Ele diz que escreveu um thriller e escreveu mesmo. O texto é elétrico, em movimento incessante das massas que vão e vem – e ora consagram o líder metalúrgico que tirou 30 milhões de brasileiros da miséria, ora o xingam de ladrão, pedem algemas, aplaudem a prisão, convencidas que ele e o PT são a fonte de toda corrupção nacional.
Morais começou a trabalhar no relato em 2011 e testemunhou a dor de d. Marisa com a perseguição do juiz Sergio Moro, o grampo ilícito no escritório dos advogados da defesa, a condução coercitiva para gerar imagens na TV – parte do lawfare, a guerra feita a partir dos tribunais e da mídia. Viu o povo gritando “Resista!” do lado de fora do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, e ouviu, o senador Lindenberg aconselhar Lula a seguir para uma embaixada e só voltar daqui a 20 anos, como Peron na Argentina, que se elegeu, elegeu o sucessor e por fim elegeu a esposa Isabelita.
Resistir era inútil e resultaria em mortes – havia o equivalente a uma brigada motorizada, caveirões e tropas de choque em torno do Sindicato. O asilo político não era coisa para o Lula, mas a prisão era. Desde jovem enfrentou o confinamento em prisões da ditadura militar e aquela da Polícia Federal de Curitiba pereceu menos assustadora, porque otimista achava que não ficaria mais de dez dias em Santa Cândida.
Mas durou 580 dias e só acabou graças ao Vermelho, o hacker de Araraquara que quebrou o sigilo das comunicações entre os procuradores e o juiz e desnudou a conspiração. Personagem que justifica um filme só para ele. Se não fosse esse Walter Delgatti, os ministros do STF não teriam evidência material da suspeição do juiz e Lula poderia está até agora ouvindo o “Bom dia, Presidente!” e o “Boa noite, Presidente!” do acampamento de Santa Cândida.
Fala de novo do bairro porque esta é uma das raras falhas da narrativa. Morais descreve como habitado pela classe média alta, gente de colarinho que não gosta do PT, nem de trabalhador em geral. É uma injustiça. O bairro é de gente pobre, tem até favela. Resume a desigualdade cada vez maior do país. Barracos se amontoam atrás do cemitério. Mais adiante, a bela casa do grande empresário do transporte coletivo. E, mais adiante ainda, a mansão de famoso advogado tributarista. Após o muro de três metros, casas de madeira assinalam com seus lambrequins pedindo pintura o estilo arquitetônico dos colonos que vieram para cá no tempo do presidente Lamenha Lins.
Desembarcaram para substituir os escravos. Com a Lei do Ventre Livre em 1871 e a abolição em 1888, faltou mão-de-obra, houve problemas de produção e ainda bem que os colonos da Silésia chegaram para criar galinha e plantar verdura nas chacrinhas que ganharam do governo. Não eram grandes, uns 100 mil metros quadrados cada uma, só quatro alqueires. Mas estavam perto da estrada da Graciosa e por ali começou a transitar em carroças, toda manhã, a produção do cinturão verde de Curitiba.
Pena que, com o tempo, os polaquinhos casaram e foi preciso dividir a chácara, em duas, depois em quatro, depois em vinte partes e onde o lugar para plantar, e a grama para a vaquinha?
Agora, em Santa Candida e na vizinha Barreirinha, na Cachoeira e no Abranches há muito desemprego, gente sonhando com frango e com o tempo em que havia leite abundante para fazer queijo. Hoje tem um pessoal furtando, ali nunca foi lugar de gatuno. Os ricos, os que chegaram de mercedes e bmw para atirar foguetes no acampamento, vinham do Cabral, do Juvevê, do Ahu, Fernando Morais. Você se enganou com a barulheira. Mas nos deu um livro emocionante. Esse Lula será traduzido e aplaudido em muitas línguas, porque conta uma história universal de resistência e luta e dor e esperança.
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