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Será que Marianne não imagina que está tirando o emprego de alguem que necessida dele? Ou imagina otimista que tudo vale a pena para expor as desumanas condições de trabalho das faxineiras dos ferries?
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Não sei se ela é a melhor atriz do cinema francês, mas a presença dela justifica a compra do ingresso. Binoche raramente erra na escolha de seus papeis e este Entre Dois Mundos não é exceção.
O filme de Emmanuel Carrère (*) conta a história de Marienne (Binoche) que, em meio à crise geral de emprego, consegue um trabalho como faxineira. Recebe menos de 8 euros/hora, pagamento miserável para os padrões europeus, não tem férias, muito menos plano de saúde ou licença-maternidade, mas era pegar ou largar.
Como o tempo ela vai aprendendo o serviço e assume um posto na equipe de limpeza do ferry Ouistreham, que faz a rota Caen-Portsmouth duas vezes por dia. Um trabalho cruel, que começa pontualmente às 6h (quem faltar ou atrasar perde o emprego) e vai até às 22h30. Há 230 cabines para trocar a roupa de cama, toalhas e limpar o banheiro, 4 minutos por cabine.
O trabalho extenuante e a ausência de tempo para ligações sociais cria uma relação de camaradagem entre a equipe mista da faxina. (Tirando Binoche, os outros personagens não são atores profissionais). Marienne vai conhecendo as companheiras de trabalho – aquela gente que vive de salário mínimo – e desenvolve amizade com várias colegas, principalmente com Chrystèle (Helène Lambert), mãe solitária de três filhos.
Aqui e ali a câmera mostra Marienne tomando notas em seu caderninho. Aos poucos descobre-se que ela é na verdade uma escritora de sucesso que finge ser mulher desempregada e abandonada pelo marido para colher material para o próximo livro.
A partir desse momento o público passa a julgar se a denúncia das condições brutais de trabalho das trabalhadoras nos ferries justifica o artifício. “Estou enganando essa gente, mas é para o bem deles” – isso é ético?
A dificuldade para decidir está principalmente na qualidade da intepretação de Juliette Binoche, que aos 61 anos e um Oscar assume cada vez mais a condição de estrela maior do cinema. Em momento algum a gente deixa de simpatizar com Marianne e seu livro-reportagem sobre as faxineiras do ferry. Mas os vinte e poucos espectadores da sessão de terça às 18h30 no Cineplex Batel saíram da sala 3 desconfiando que certo mesmo é o que determina Chrystèle ao decidir se afastar para sempre da escritora rica: “Chacum à son place!”.
Cada um no seu lugar.
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(*) Emmanuel Carrère é um diretor esporádico. Seu filme anterior The Moustache é de 2005. Este é de 2021 – ninguém sabe porque só agora chegou aqui.
Entre os dois filmes, Carrère escreveu o monumental O Reino, best-seller vendido na França em edições sucessivas que somam centenas de milhares de copias. O livro, que para alguns críticos é uma obra prima, reconta os primordios do cristianismo e investiga as vidas de São Paulo e São Lucas.
Carrère descreve como dois homens, Paulo e Lucas, transformaram uma pequena seita judaica – centrada em seu pregador, crucificado durante o reinado de Tibério e que acreditavam ser o messias – em uma religião que em três séculos transformou a fé no Império Romano e conquistou o mundo.
Em português a edição é da Companhia das Letras, tradução de André Telles.